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sábado, 23 de janeiro de 2016

Bassinho, 

o Jardineiro do Rei

 Conto                                                                                              Darcy N. Brito



Kalada, é uma pequena cidade, e uma das poucas, talvez a única, que ao contrário do resto do país não conseguiu libertar-se da ditadura. Isto porque é governada por um todo poderoso que se auto-condecorou rei, e a governa há várias gerações. Todos os seus habitantes são observados como se vivessem num grande Big Brother. Ninguém se atreve a desobedecê-lo, sob pena de sofrer as mais incríveis retaliações. Todas as ruas, avenidas ou estabelecimentos públicos recebem o seu nome ou de algum membro de sua numerosa família. Quem não está com o rei é seu inimigo em potencial. Nada se faz sem o seu aval, seja um mini comércio, uma fábrica, uma construtora ou um hospital, Durante as eleições seus “eleitores” e correligionários recebem ameaças, caso haja traição. Os comícios festivos são recheados de promessas nunca cumpridas. Jornal que não está com o rei é fadado à falência, por falta de anunciantes. Mas, o incrível é que sua imagem é cultuada como um deus que protege os seus fiéis. Ai de quem falar mal de seu senhor, que até chora nos enterros de seus fiéis. Compadece-se dos pobres, beija criancinhas, velhinhos, e emprega quem estiver imbuído nos seus propósitos.

É nesta cidade que mora Basilio Filho, ou Bassinho, apelido carinhoso que Basílio pai, cabo eleitoral do rei, lhe deu para diferenciar de seu próprio nome.

Bassinho estava desempregado quando seu pai resolveu pedir ao “senhor todo poderoso” que arranjasse qualquer coisa para seu filho ganhar dinheiro. Não queria pedir a intermediário ou santo sem força. Foi direto a “deus”, pois, tinha cartaz com o homem de causar inveja. Lá chegou e expôs seu problema.

- Coronel, com licença. É que meu filho Bassinho tá muito precisado, e....

Nem completou o pedido e o todo poderoso retrucou zangado: não sou coronel, não me ofenda!

-Desculpe, quero dizer, majestade, excelência.

-Muito bem, fale. Ele é deficiente? Perguntou o rei batendo o fundo da caneta na mesa. É que só estou dando emprego a deficiente. Sabe como é? – e, piscando o olho, continuou: dá voto e ameniza o sofrimento dessas criaturas. Vá falando.

-Deficiente, assim, de quê?

- De qualquer coisa. De preferência surdo-mudo ou cego. Pelo menos esses ingratos não vão sair por aí falando mal do governo, nem dizendo que viu isso ou aquilo, sabe como é?

-Entendi. Por sorte meu Bassinho é deficiente.

-Por sorte! Você é um pai desalmado, desnaturado.

-Não, senhor. Quero dizer, por coincidência de deficiência.

-Qual a deficiência dele?

-Tudo. E ainda por cima tem mulher e filho.

-Mas, de concreto, o que poderia ele fazer na prefeitura, que é onde posso arranjar um emprego, talvez de jardineiro?

-Jardineiro! É sopa no mel. Ele adora flores, tem mãos de adubo; as plantas lá de casa são viçosas que só vendo. Pena que ele não pode ver.

-Então, ele é cego?

-Cego, surdo e mudo como o senhor gosta, quer dizer, como o senhor está precisando.

-Huum! Entendi. Lida com flores, mas não enxerga.

-Sim senhor.

-Pelo menos sente o aroma que elas exalam?

-Depende da flor. Se o cheiro for muito forte ele tapa o nariz.

-Sei, sei. Acho que tenho um serviço pra ele. Amanhã me traga o deficiente.

-É uma ordem, coronel. Desculpe. O senhor já disse que não é coronel, quero dizer excelência, majestade. Até amanhã.

Basílio foi ao encontro do filho Bassinho cheio de esperança. Não só iria arrumar a vida do filho, como, também, prestar serviço à sua excelência majestade. Chegando a casa encontrou o “deficiente” ouvindo um som bem alto, digamos ensurdecedor.

Para, para! Você não pode ouvir este som. De agora em diante está proibido. E nada de revista de mulher pelada também. Onde já se viu um cego surdo e mudo dançando e lendo revista pornô!

-Pirou pai? Foi o senhor quem trouxe essa revista. E o som de pagode? Não gosta mais? Que história é essa de cego, surdo? Eu hein!

-Você é um deficiente.

-Agora o senhor me ofendeu. A troco de quê?

-A troco de um bom emprego que acabo de arranjar para você.

-E precisava dá a notícia dessa maneira? Vamos comemorar o grande acontecimento.

-Na verdade não podemos comemorar, ainda. Você vai ter que passar no teste.

Teste? Ah! Logo vi. Já fiz vários e não deu em nada. Tô fora.

-Fora coisa nenhuma. Dessa vez só depende de você. Das outras já se sabia o resultado, eram cartas marcadas.

-E o que devo fazer?

-Primeiro vamos ter que providenciar uns óculos escuros, desse de cego.

-Oba! Vou ficar um charme.

-Um aparelho para surdez, ou seja, pra ficar surdo mesmo. Daqueles que se usa pra não ouvir nada. Só que deve parecer que é pra surdo ouvir alguma coisa.

-Então é emprego em teatro!

-Digamos que sim. Mas não é ficção, é emprego real. E para ser aprovado você tem que convencer que realmente é deficiente. Não ouve, não vê e nem fala.

-Pelo menos posso balançar a cabeça, em sim ou não, caminhar, ou sou tetraplégico também?

-Claro que pode. Não sou tão desalmado a esse ponto. Afinal um jardineiro tem que caminhar muito para florir uma cidade.

-Jardineiro? Você me arranjou um emprego de jardineiro que não enxerga, não fala nem ouve? Eu que nunca soube fazer diferença entre um pé de laranja e uma bananeira, mesmo sendo normal!

-Por isso mesmo. O homem quer um jardineiro com essas qualidades que lhe falei. O papel é seu, é pegar ou largar. E não se faça de rogado que o emprego está de bom tamanho. Além do mais, a cidade estava precisando de alguém que gostasse de flores. O povo merece.

-O senhor quer dizer que meu serviço será plantar flores?

-E que mais um jardineiro deve fazer? Um deficiente, ou melhor, uma pessoa com necessidades especiais como falam agora, tem lá suas limitações. Não vá querer ir muito em frente, senão você pode dar com a cabeça na parede.

-O senhor só pode estar troçando de mim.

Troçaaando! Estou lhe dando a chance de mostrar que é um bom ator e você me diz isso? Mal agradecido, é o que você é. Sempre acreditei em você, de outra forma não teria falado com sua excelência majestade, o coronel todo poderoso.

-O senhor estar me dizendo que falou com...

-Isso mesmo. E ele só está dando emprego a deficiente, daí achamos que você seria per-fei-to.

-Per-fei-to? Bom seria se o “r” viesse depois do “p”.

-Bem, aí quem sabe, futuramente. Você seria o primeiro prefeito com necessidades especiais eleito. Com apoio de sua excelência, o todo poderoso coronel, é claro.

-O senhor está esquecendo que eu sou normal.

-Era. Agora é um aprendiz de político.

-Ou seja, para me dar bem tenho que ser deficiente.

-No momento não temos saída. Outra coisa: arranje uma mulher e filho. Tive que aplicar mais essa.

-Isso é mais complicado que me fingir de cego. Mentir pra mulher é mais difícil. Mas, aceito o desafio. Nada tenho a perder.

-Tem sim. Não se esqueça que vai ficar deficiente. Vamos começar o treino. O de cego, naturalmente, porque não adianta aprender o alfabeto de surdo mudo porque não vai ser preciso, você não veria a leitura labial ou de sinais.

-E a leitura em Braile?

-Também não, porque você não ouviria as pronúncias. E identificar as coisas tato por tato é inviável.

-Bem que você poderia ter dito que eu era apenas cego. E me arranjar um emprego numa telefônica estatal.

-Tá doido? Envolver-se com grampo? A culpa iria sobrar pra você.

-Então mãos à obra, já estou me sentindo com três sentidos a menos. Pensando bem, vai ser bom, esses três sentidos nos deixam muito estressado. Meu cachorrinho, por exemplo, que Deus o tenha, era inquieto, latia a toda hora, mas quando ficou mais velho, surdo e cego, vivia calmíssimo até o dia de morrer.

-Pois é isso, sempre aprendemos algo nas tragédias.

Os dois começaram o treino pelos óculos pintados de preto, para não enxergar mesmo e transmitir mais autenticidade. Arranjaram uma bengala e saíram batendo a torto e a direito. Mas, aí pensaram: como seria a comunicação com sua excelência? Ou seja, saber o que ele queria que Bassinho fizesse. Sim, porque ninguém naquela cidade tinha vontade própria, muito menos um deficiente. Então deixaram para acertar tudo na ocasião do encontro com o chefe.

Bem treinado, lá se foi Bassinho com o pai acertar o cargo com sua excelência majestade.

-Aqui está ele, coron... majestade.

-Qual o grau de surdez dele? Vejo que usa um aparelhinho.

-Apenas ruídos, sem identificação, e, ás vezes, ele até tira essa coisa, quando conveniente. Quando sai na rua coloca para ouvir o barulho dos carros. Mas enxergar, não enxerga nada.

-Muito bom. Mas de que forma devo dar ordens, em que sinal?

-Da forma que achar melhor. O senhor escolhe.

-Sei. Vamos supor que eu quero que ele plante rosas num determinado trecho, aí, posso dá uma bicuda de leve na canela direita dele?

-Claro! Canela dura e forte que nem a dele o senhor não vai encontrar.

-Caso ele não entenda, dou com mais força.

-Certo. Deixe-me anotar para treinar em casa.

Seu Basílio tirou um caderninho e foi anotando tudo.

-Tudo bem. Agora suponhamos que quero que ele cave a terra para colocar adubo, dou uma bicuda na canela esquerda.

-Pois não. Canela esquerda adubo, anotei.

Bassinho estava curioso para saber como era o sapato do ditador, se era bico fino ou largo. Mas tinha de fingir, e esse foi seu primeiro teste. Tudo parecia estar dando certo, quando o chefe todo poderoso deu um berro num Secretário de Estado, que veio apresentar um dossiê incompleto. O grito foi tão grande que Bassinho se assustou e quase cai. E o pai falou para o manda tempestade:

-Vou tirar o aparelho de ouvir ruídos, que é para sua majestade ficar à vontade.

-Desconfiado, o coronel mirou Bassinho em vários ângulos e disse: vá se acostumando.

-Bassinho já ia balançar afirmativamente com a cabeça, quando seu Basílio pisou no pé dele com força. Não agüentando a dor, ele urrou bem alto:

- Aaaaii!

-Que foi isso?Perguntou o rei. Ele não é mudo?

-É, respondeu o pai. Mas tem sentimento. É que pisei no pé caloso dele sem querer.

-Então não vai agüentar as minhas bicudas.

-Vai sim, senhor. Suas bicudas serão pro bem dele. Depois de treinado e calejado, ele acostuma.

-Assim é que se fala. Aguardo seu retorno, quando ele estiver preparado para o cargo. Caso você ache conveniente compre umas caneleiras, dessas de jogador de futebol. Acho que ele vai precisar. O coronel falou piscando o olho.

Basílio e Bassinho saíram apreensivos e se esqueceram da bengala na sala de sua excelência, que já estava desconfiado da eficiência do deficiente, ou, da deficiência do eficiente. Olhou bem para a bengala e disse com seus botões – bengala novinha em folha.

Basílio não deixou que Bassinho andasse sem os óculos pelas ruas e teve que segurá-lo pelo braço por todo o trajeto. Um amigo, que passava pelo outro lado da rua, atravessou aflito e veio perguntar o que estava acontecendo.

-Nada, nada, respondeu o pai. Ele é um dos candidatos como figurante, num filme que vai ser rodado aqui em Kalada. Está treinando pra ser o cego.

-Poxa, que susto! Será que tem um papel pra mim?

-Só se você for deficiente de verdade.

-Mas Bassinho não é cego de verdade e...

-Fingir que é cego é fácil, difícil é ser coxo. Tem que ter as pernas deformadas e se arrastar pelo chão.

-Precisam de coxo? Na situação em que estou bem que poderia dá um jeito de arranjar alguém que quebrasse minhas pernas.

Não se faz um coxo assim de repente. Tem que ter as mãos calejadas de muito tempo e saber andar se arrastando ligeiro. Lembra do ditado, “mais fácil pegar um mentiroso que um coxo?” ( foi aí que Basílio lembrou-se da bengala).

-Mas cinema tem artifícios, efeitos especiais – falou o amigo.

-Mas se tem coxo no enredo, a platéia quer autenticidade, são sádicos – disse Basílio já nervoso pensando na bengala. Depois a gente se fala, estamos com pressa.

-Chegando a casa, pai e filho comentaram sobre a bengala:

-Nem vou voltar lá, pai. Ele é capaz de quebrar a bengala na minha cabeça. O senhor mesmo disse: mais fácil pegar um mentiroso...

-Para ele não importa a mentira, o que importa é saber fingir, convencer. Precisamos pensar no que dizer a respeito da bengala. Às vezes há males que vem para o bem.

-Não entendi.

-Se dermos uma explicação convincente, iremos nos encaixar perfeitamente nos planos dele.

-Continuo sem entender, mas, tudo bem. O senhor deve conhecer melhor a peça.

-Sua função é só a de ser deficiente.

-O que já requer talento demais.

-Ah! Sempre achei que você seria um grande deficiente.

-Obrigado pelo incentivo, não vou decepcioná-lo.

Voltando ao todo poderoso, que o recebeu mostrando a bengala, seu Basílio foi logo dizendo; -Ah! Quando ele está comigo não precisa de bengala, foi por isso que não voltei para buscar de imediato.

-Acredito, vamos às primeiras ordens- o coronel falou com a ponta da bengala na barriga de Basílio.

E, realmente, Bassinho acatou todas as ordens vindas de sua excelência o coronel, e desempenhou seu papel da melhor maneira que pode. Quando errava, tomava umas bicudinhas na canela, mas até achava graça.

Passaram-se os dias. Uma florzinha aqui, outra acolá, e a cidade foi ficando toda florida. Tão florida que Bassinho sentiu-se dono do jardim. As pessoas o chamavam de O Jardineiro do Rei. Ele, é claro, tinha que fingir que não ouvia, mas não gostava do apelido.

Um dia, por ter recebido uma canelada mais forte, na canela esquerda, a do adubo, que deveria ser colocado no jardim do rei, e não o foi, o jardineiro achou que era hora de dar um basta em toda aquela farsa. Mesmo porque, ele sabia que junto com o adubo sua majestade o coronel, escondia detritos mal cheirosos. Resolveu, então, tirar os óculos escuros de cego e colocar um de grau, pois de tanto olhar no escuro estava realmente ficando cego. Chamou o povo e abriu a boca no mundo.

-Estou curado!

O povo ficou estarrecido e começou a gritar: MILAGRE! MILAGRE! O jardineiro do rei está enxergando e falando. Aplaudiam, queriam beijar-lhe as mãos e o chamaram de Santo.

Toda essa manifestação, porém, incomodou sua excelência majestade o rei, que tratou de arranjar um substituto para baixar a bola do petulante jardineiro, e chamou o pai do “deficiente”.

-Então seu filho botou as manguinhas de fora? Deu com os burros n’água.Vai ver o que é bom pra tosse. De hoje em diante nem flor nem adubo e muito menos água. A fonte secou. Deve estar plantando muda no próprio quintal, o ousado. Vou cortar o cano do safado. O rei coronel soltava fogo pelas ventas.

Basílio, cabisbaixo, disse:

- Pois é meu rei, eu tentei segurar, mas, não deu. Quando dei por mim o povo já estava na rua. E com a força do povo sua excelência sabe que surdo ouve, mudo fala e cego enxerga.














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